Investimento Social Privado no combate à Insegurança Alimentar e Nutricional no Brasil: Financiadores e executores de iniciativas de combate à fome
A insegurança alimentar e nutricional é um sintoma da sobreposição de diferentes desigualdades socioeconômicas brasileiras. Entre 2019 e 2021, cerca de 61,3 milhões de pessoas enfrentaram uma situação de insegurança alimentar moderada ou severa no Brasil1.
2014
Brasil sai do Mapa da Fome2
2020
Brasil volta a ter níveis
alarmantes de insegurança
alimentar e nutricional
2022
mais de 30 milhões de pessoas passaram fome no Brasil4
Em 2020, as principais causas para o aumento dos índices brasileiros de insegurança alimentar e nutricional foram³:
Crises econômicas nos níveis nacional e internacional
Pandemia da covid-19
Guerra da Ucrânia
Mudanças climáticas
Desmonte de programas e aparelhos estatais de combate às desigualdades e, mais especificamente, à insegurança alimentar e nutricional
Fontes:
FAO, FIDA, OMS, PMA y UNICEF. 2022. El estado de la seguridad alimentaria y la nutrición en el mundo 2022. Adaptación de las políticas alimentarias y agrícolas para hacer las dietas saludables más asequibles. Roma, FAO. DOI: https://doi.org/10.4060/cc0639es.
FAO. 2014. O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil: Um Retrato Multidimensional. Brasília, FAO.
FAO, FIDA, OMS, PMA y UNICEF. 2022. El estado de la seguridad alimentaria y la nutrición en el mundo 2022. Adaptación de las políticas alimentarias y agrícolas para hacer las dietas saludables más asequibles. Roma, FAO. DOI: https://doi.org/10.4060/cc0639es. FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2023. The State of Food Security and Nutrition in the World 2023. Urbanization, agrifood systems transformation and healthy diets across the rural–urban continuum. Rome, FAO. DOI: https://doi.org/10.4060/cc3017en. Rede PENSSAN. 2022. II inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. ISBN 978-65-87504-50-6.
Rede PENSSAN. 2022. II inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. ISBN 978-65-87504-50-6.
Prevalência média de insegurança alimentar moderada ou grave entre 2020 e 2022 no mundo
A saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014 foi uma conquista fruto de um esforço de movimentos e organizações da sociedade civil, governo e setor privado. A recuperação e manutenção de melhores índices de segurança alimentar e nutricional dependem de iniciativas que extrapolam a capacidade pública, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil. A pesquisa olhou para iniciativas do setor filantrópico a fim de identificar lacunas e potencialidades da iniciativa do ISP no combate à insegurança alimentar e nutricional.
Como o Investimento Social Privado (ISP) atuou no combate à insegurança alimentar e nutricional no Brasil entre os anos de 2020 e 2022?
331
iniciativas mapeadas
Programas, projetos, campanhas e articulações multissetoriais
150
fundações e institutos pesquisados a fundo
81
fundações e institutos com iniciativas mapeadas
587
instituições apoiadoras e/ou financiadoras de iniciativas
727
organizações executoras de iniciativas
12
entrevistas com atores-chave do campo
movimentos, organizações executoras e institutos financiadores
Destaques da Pesquisa
1 Como as iniciativas foram organizadas?
176 Projetos
Os projetos são iniciativas mais específicas e normalmente de menor porte. As iniciativas visaram o aumento da segurança nutricional (83) e a produção de alimentos (68).
116 Campanhas
As campanhas costumam ser pontuais e chamativas, e algumas são recorrentes (ex: campanhas de Natal). Os objetivos mais recorrentes foram o alívio da fome (115) e a segurança nutricional (22).
25 Programas
Os programas são iniciativas mais amplas que servem como um guarda-chuva temático de diversos projetos. Seus objetivos mais frequentes foram o fomento à produção de alimentos (11) e a segurança nutricional (10).
14 Articulações Multissetoriais
A articulação multissetorial refere-se à mobilização de diferentes atores em prol de uma causa comum. Iniciativas deste tipo tiveram como objetivo a segurança nutricional (10) e o alívio da fome (6).
Cada iniciativa poderia ter até dois objetivos principais.
2 Quais os principais objetivos apoiados pelo ISP?
ALÍVIO DA FOME
Iniciativas que tiveram como objetivo fazer com que o alimento chegasse diretamente às populações em situação de insegurança alimentar.
Objetivo de 184 iniciativas e de 99% das campanhas
SEGURANÇA NUTRICIONAL
Este objetivo está relacionado à garantia de uma nutrição adequada. Ele foi pensado a partir dos níveis de insegurança alimentar e nutricional adotados pela EBIA e foi o objetivo da maior parte das iniciativas de articulação multissetorial (ex: realização de fóruns ou debates sobre o tema).
Objetivo de 125 iniciativas
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
Iniciativas vinculadas ao elo da produção na cadeia do alimento. Um exemplo clássico é a criação de cursos para produção e/ou disseminação de conhecimento sobre hortas comunitárias e alimentação saudável.
Objetivo de 82 iniciativas
redução de desperdício
Iniciativas que encontraram no desperdício realizado pela indústria e varejo uma oportunidade para a redistribuição de alimentos.
Objetivo de 32 iniciativas
Acesso à água/saneamento
As iniciativas visaram o fornecimento de água para plantação, o consumo seguro de água potável e a higienização dos alimentos. O acesso à água e ao saneamento permitem a produção de alimentos orgânicos e locais, além do consumo de forma apropriada.
Objetivo de 10 iniciativas
redução de perda
Na cadeia do alimento, a perda pode ocorrer até o final do elo da produção. Isso explica a maior parte das iniciativas com este objetivo estar relacionada a esse elo.
Objetivo de 7 iniciativas
3 Quais as relações das iniciativas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU?
Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável.
Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.
Número de iniciativas com ODS relacionadas
Cada iniciativa pode estar relacionada a mais de um ODS e 28 não estavam explicitamente relacionadas a nenhum deles.
“Acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano”.
201 iniciativas relacionadas. Tais Iniciativas normalmente: distribuem alimentos ou meios para obtê-los; viabilizam o acesso a alimentos orgânicos, livres de agrotóxicos.
“Até 2030, acabar com todas as formas de má-nutrição, incluindo atingir, até 2025, as metas acordadas internacionalmente sobre nanismo e caquexia em crianças menores de cinco anos de idade, e atender às necessidades nutricionais dos adolescentes, mulheres grávidas e lactantes e pessoas idosas.”
101 iniciativas relacionadas. Iniciativas com o propósito de garantir dieta diversificada e nutritiva para populações específicas (crianças, adolescentes em idade escolar, moradores de rua, comunidades quilombolas e ribeirinhas, entre outros).
“Dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos, particularmente das mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores, inclusive por meio de acesso seguro e igual à terra, outros recursos produtivos e insumos, conhecimento, serviços financeiros, mercados e oportunidades de agregação de valor e de emprego não agrícola.”
60 ações. Iniciativas de implementação de processos e práticas agroecológicas que diversificam a produção; fomento à trocas de experiências entre produtores; capacitação técnica agrícola.
“Garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhoram progressivamente a qualidade da terra e do solo.”
65 ações. Iniciativas que estimulam e dão suporte à produção agrícola familiar; desenvolvem mecanismos para melhor aproveitamento dos recursos naturais; defendem e lutam pela preservação e acesso à terra.
“Manter a diversidade genética de sementes, plantas cultivadas, animais de criação e domesticados e suas respectivas espécies selvagens, inclusive por meio de bancos de sementes e plantas diversificados e bem geridos em nível nacional, regional e internacional, e garantir o acesso e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados, como acordado internacionalmente.”
12 ações. Iniciativas que fortalecem práticas tradicionais de produção de alimentos, com ações de resgate, seleção, melhoramento e troca de semestres e mudas crioulas nativas
“Até 2030, alcançar a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais.”
77 ações. No geral, trata-se do apoio a iniciativas que visam o aprimoramento do processo de produção de alimentos, como capacitação para a manutenção de hortas urbanas, melhoria nos processos de produção agroecológica, fortalecimento de sistemas alimentares, entre outros.
“Reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita.”
32 iniciativas. Iniciativas que coletam e distribuem o alimento fora do padrão comerciável, mas aptos ao consumo; estimulam à utilização integral do alimento; por meio do processamento, aumentam a vida útil do alimento, evitando seu descarte.
“Incentivar as empresas, especialmente as empresas grandes e transnacionais, a adotar práticas sustentáveis e a integrar informações de sustentabilidade em seu ciclo de relatórios.”
24 ações. Iniciativas realizadas sobretudo por institutos e fundações ligados a empresas privadas, projetos conectados à melhoria da gestão de projetos de ESG de empresas, acompanhados por sistemas de métricas de sustentabilidade específicas como SASB, GRI entre outros.
Total de iniciativas por ODS (%)
4 Quais os principais mecanismos utilizados?
Doação de alimentos
138 iniciativas
Produção/disseminação de conhecimento
111 iniciativas
Produção de alimentos
37 iniciativas
Doação financeira
32 iniciativas
Conexão entre atores
13 iniciativas
5 Em que momento da cadeia do alimento o ISP atua?
A maior parte das iniciativas esteve relacionada aos extremos da cadeia: a produção de alimentos e o consumo.
O armazenamento e o processamento podem ter aparecido em menor medida, pois costumam ser elos abarcados pela indústria, e não por iniciativas de organizações sociais.
A logística ainda é um elo frágil e inexplorado dada a sua importância. Iniciativas de transporte de alimentos, em especial, apareceram raras vezes, o que pode ser explicado pelo seu alto custo.
Produção
95 iniciativas
As iniciativas visaram o aprimoramento da produção agrícola familiar, seja por meio da aplicação de tecnologias no campo, seja por intermédio de assessoria técnica especializada. O estímulo à criação de hortas urbanas também foi recorrente.
Armazenamento
7 iniciativas
Os bancos de alimentos são bem representativos deste elo. Os alimentos são estocados enquanto não são direcionados às instituições sociais.
Logística
14 iniciativas
As iniciativas estavam voltadas à facilitação do processo de escoamento dos produtos alimentícios vindos do campo ou do varejo, com destino à comercialização ou à doação.
Processamento
6 iniciativas
As iniciativas deram um novo direcionamento aos alimentos, reaproveitando-os e transformando-os em outros produtos.
Varejo
30 iniciativas
As iniciativas visaram principalmente a redução do desperdício, estimulando descontos ou doações de alimentos.
Consumo
250 iniciativas
Este elo é marcado pela distribuição de alimentos e pela conscientização do consumidor final sobre a redução do desperdício e a segurança nutricional.
6 Qual a abrangência da atuação do ISP?
As fundações e institutos empresariais tendem a investir nos locais onde suas empresas têm atuação. Isso pode enviesar a distribuição do recurso, de forma a não abarcar comunidades e organizações que necessitem mais de auxílio.
*Estes números consideram o total de iniciativas por região e estado, sendo que cada iniciativa pode ocorrer em mais de um local
7 Qual o tempo de duração das iniciativas?
A maior parte das iniciativas (63,7%) foi criada durante a pandemia, a partir de 2020.
2020 foi o ano com maior número de iniciativas iniciadas (109) e com a maior porcentagem de iniciativas financiadas/apoiadas que eram emergenciais (41,1%).
Em andamento134 (40,48%)
Concluído154 (46,53%)
43 iniciativas (12,99%) não possuíam informação quanto ao status
Das 134 iniciativas que ainda estão em andamento, 126 já duram pelo menos 2 anos, o que revela o fortalecimento das iniciativas.
Das 154 iniciativas que foram concluídas, 91 se tratavam de iniciativas com motivação inicial emergencial. As outras 63 podem ter sido descontinuadas por razões como falta de recursos e mudança na orientação estratégica de financiadores.
8 De que forma foi realizado o financiamento e apoio de iniciativas?
O investimento em iniciativas específicas e a verba carimbada foram apontados como dificuldades para a manutenção institucional das Organizações da Sociedade Civil.
9 Quantos atores da área têm a segurança alimentar e/ou o sistema alimentar como prioridade?
Apenas 11 fundações e institutos têm o tema como um dos seus pilares de atuação. Juntas, elas financiaram/apoiaram 132 iniciativas*, cujos objetivos eram:
segurança nutricional 54 iniciativas
alívio da fome 48 iniciativas
produção de alimentos 45 iniciativas
redução do desperdício 21 iniciativas
redução da perda 5 iniciativas
acesso à água/ saneamento 2 iniciativas
*No total, as 11 fundações/institutos se envolveram 139 vezes nos casos, uma vez que 7 ações foram financiadas/ apoiadas por mais de uma instituição.
O financiamento e apoio a iniciativas com os objetivos de segurança nutricional e produção de alimento apontam para um planejamento de longo prazo realizado pelas fundações e institutos.
O alívio da fome também aparece com recorrência, mas 43% das iniciativas com esse objetivo surgiram de necessidades emergenciais.
10 Quais as oportunidades para o ISP na garantia da segurança alimentar e nutricional?
Apoio a iniciativas de redução de perdas e desperdícios
Foram identificadas poucas iniciativas cujo objetivo principal era a redução de perdas (2%) ou a redução de desperdícios (9,7%). No Brasil, cerca de 55 milhões de toneladas são desperdiçadas anualmente, o que equivale a alimentar 8 vezes as pessoas em situação de IA grave*. O investimento e apoio do ISP a iniciativas deste tipo poderia auxiliar na prevenção e remediação da perda e do desperdício.
*Consultoria do Amanhã, Integration e União SP. 2022. Relatório Diagnóstico: Mapa da Fome e do Desperdício de Alimentos no Brasil. Disponível em: https://desperdicioefome.org
Foco na redistribuição e transformação dos alimentos
A grande maioria das iniciativas envolve os elos do consumo (75,1%) e da produção (28,5%), o que demonstra um cuidado maior com a soberania alimentar e a alimentação saudável. Porém, iniciativas ligadas à logística, ao armazenamento e ao processamento são tão necessárias quanto, podendo auxiliar na redistribuição e transformação de alimentos que seriam descartados.
Apoio a programas e articulações multissetoriais
Existe um potencial de investimento e apoio a programas e articulações multissetoriais, que podem compor trabalhos mais complexos, robustos e contínuos do que campanhas de arrecadação de alimentos, por exemplo. As articulações têm o potencial de aumentar a escala e destravar recursos para regiões afastadas de localidades mais centrais.
Expansão para outros estados e regiões
O ISP brasileiro concentra-se na região Sudeste (67%), sobretudo no estado de São Paulo. No entanto, as regiões Norte e Nordeste são as com maiores proporções de habitantes em situação de insegurança alimentar e nutricional, e por isso necessitam de mais apoio do setor privado.
Iniciativas relacionadas a ODS de longo prazo
A maioria das iniciativas está relacionada ao ODS 2.1, focando no acesso à alimentação, enquanto um número muito menor atende aos demais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Isso demonstra um foco do ISP em iniciativas mais imediatas de fornecimento de produtos e refeições ao invés de iniciativas que podem ter impactos estruturantes no longo prazo.
Fortalecimento de lideranças comunitárias e pequenas organizações
O financiamento e apoio de lideranças comunitárias e organizações locais que tenham como prioridade a segurança alimentar pode trazer capilaridade às iniciativas, de modo a construir novos polos de trabalho que sejam focados na comunidade e que auxiliem na conscientização da população local.
Financiamento e apoio contínuos
O ISP tem demonstrado um financiamento e apoio contínuos a certas iniciativas. Porém, o número de iniciativas que receberam financiamento/apoio caiu entre 2020 e 2022. O investimento duradouro é fator chave para a criação de uma cultura do não-desperdício, da educação populacional, do cultivo de alimentos orgânicos e do convencimento de empresas do ramo alimentício sobre a importância de sua participação e responsabilização no campo.
Autor e autoras
Pietro Carlos de Souza Rodrigues
Coordenador da pesquisa
Laura Simões Camargo
Pesquisadora
Isabella Ramos Esteves
Pesquisadora
Gabriele Candido
Coordenadora de Impacto Social do Instituto BRF
Rafaela Berçot
Analista de Impacto Social do Instituto BRF
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